Performações narrativas de mulheres pobres beneficiárias de programas de transferência de renda e as raízes do Brasil

Partindo do quadro teórico oferecido pela Análise da Narrativa, este trabalho busca analisar e descrever narrativas advindas de entrevistas geradas pelo pesquisador autor com mulheres negras, pobres, atendidas por programas de transferência de renda, observando especificamente as maneiras e pelas quais essas mulheres performam, organizam e interpretam discursivamente suas condições de beneficiárias de programa socioassistencial, estabelecendo relações com o contexto macro-social. Utilizando a entrevista qualitativa como ferramenta de pesquisa, os resultados apontaram para um vasto emprego de “narrativas breves” (cf. BAMBERG e GEORGAKOPOULOU, 2008), as quais cumpriram especificamente a função retórica de apoiar um determinado ponto argumentativo (especialmente aquele de acordo com o qual o benefício se constitui em uma “ajuda valiosa”). Considerando o “código de honra do ‘dar’ e ‘receber’” (SARTI, 2011), o qual se sobrepõe, nos termos de Sarti (2011), ao entendimento dos direitos universais de cidadania – um traço estrutural da formação histórica brasileira – estabelece-se, nas entrevistas analisadas, por parte das entrevistadas, um universo de obrigações morais centrado no entendimento do benefício social enquanto um complemento do valor do trabalho (ajuda), na ausência da totalidade dos recursos para a sobrevivência, evocando o grande sistema de coerência guiado pela virtude católica da caridade. É exatamente desse código moral que deriva a personalização das relações sociais observada nesta pesquisa, reverberando o resultado de estudos empreendidos por Freyre (1980), Holanda (2007) e Da Matta (1986) que apontam para a elaboração de um universo social no Brasil onde as relações capitalistas se entrecruzam com traços escravagistas e clientelistas.